O Chamado de Chernobyl #2 – Crepúsculo Radioativo

STALKER_lonerApós ter sobrevivido ao tiroteio na oficina mecânica, o Homem Marcado aprende que achar Strelok será uma tarefa mais difícil do que imaginara. Em busca de seu objetivo, ele viaja pelas entranhas da Zona, encontrando o desconhecido e tentando entender mais sobre si mesmo.

Estes contos são baseados na minha experiência com o jogo S.T.A.L.K.E.R.: Shadow of Chernobyl.

Mods utilizados:

Autumn Aurora 2 (Thanatos Touch) 2.1

Boa viagem, S.T.A.L.K.E.R.!

SSS1Esse lugar me enoja. Por que estou aqui?

Strelok é a resposta. Devo mata-lo.

Estou há pouco tempo nestas terras, mas mesmo assim sinto um desejo instintivo de me afastar. Minhas roupas, pele e mente estão impregnadas com o cheiro fúnebre da Zona. Sinto o grosso da sujeira agarrada em meus dentes derreterem em flocos que costumo cuspir a todo momento. A água vale mais que a vida por aqui. Apenas as nuvens cinzas, Deus ou o que quer tenha criado este pequeno inferno sabe quantas vidas eu não tiraria por um banho. Para escovar meus dentes.

Poria uma bala na cabeça de Sidorovich por um bom copo de água.

Quase morri para pegar um flash drive para ele, em busca de informações sobre Strelok, mas como um bom mercador, Sidorovich se recusa a me entregar tudo de vez. Assim, ouvi pouco.

Aparentemente, minha obsessão é também um S.T.A.L.K.E.R. Dizem que ele achou uma maneira de acessar as áreas do extremo norte da Zona. Terra virgem, rica em artefatos. Uma mina de uma matéria mais cobiçada que o ouro.

Artefatos são o motivo de haverem tantos idiotas pretensioso a fazer riqueza na Zona. São objetos comuns que devido as anomalias presentes por aqui, adquirem características curiosas, quase mágicas. Homens como Sidorovich são a ponte para o exterior, as pessoas certas para conseguir vender um artefato obtido.

E isso foi tudo o que ouvi como recompensa. Não me esclareceu muita coisa além de que o mercador era um mentiroso desgraçado que merecia uma bala na cabeça como troco. Mas Sidorovich é esperto. Já lidou com desgraçados mais perigosos que eu e conseguiu o que queria.

Ele disse que poderia encontrar Strelok, mas eu teria que ajuda-lo. Ele também quer encontrar um caminho para essa área virgem, mas alguém ou alguma coisa estava impedindo seu progresso. Sidorovich e seus associados descobriram que em um lugar chamado “Instituto de Pesquisa Agroprom” alguns caras encontraram algo a respeito dos meios que Strelok encontrou para acessar a terra virgem, ou o centro da Zona, como se referem ao local.

SSS2

Eu teria que trabalhar para Sidorovich novamente. Mais duas vezes.

Por esse motivo, estava abrindo dois buracos no peito de um homem com a espingarda de cano serrado que peguei no meu último confronto. O coitado era o segundo trabalho que me foi passado pelo mercador. Um devedor que pagou alguns artefatos comprados com a vida. Não sabia que estavam vendendo artefatos por tão pouco.

O cheiro do sangue esparramado pelo tiro era encoberto pelo fedor dos corvos que refestelavam acima, em decorrência do banquete iminente. Por um momento só pude ouvir em apreciação o crocitar daqueles que se alimentavam da morte.

Estavam no lugar correto, onde a morte nunca era escassa. Onde todo homem encontraria seu fim. Inclusive Strelok.

SSS3

O Instituto de Pesquisas Agroprom ficava fora do Cordão, em uma região chamada de Lixão. Para alcança-la, eu teria que passar sob uma ponte quebrada que estava sendo guardada pelos militares, pois obviamente, o inferno nunca poderá estabelecer residência na terra sem que o governo vá explora-lo.

O inferno resolveu emergir em Chernobyl, na Ucrânia, vindo primeiramente em uma pequena amostra no desastre de 26 de Abril de 1986. Vinte anos depois, as coisas mudaram. A Zona acordou.

Dizem que luzes ofuscantes preencheram o céu ao redor das ruínas da usina nuclear de Chernobyl. Nesse momento, as nuvens evaporaram em um rugido ensurdecedor que foi precedido por um terremoto de escalas apocalípticas.

Algo despertou em Chernobyl e em suas proximidades. As leis da física já não eram tão certas, e as anomalias tomaram conta de quase toda a região. Fenômenos inexplicáveis, armadilhas mortais que em conjunto com mutantes decorrentes da radiação, são responsáveis por selecionar os mais aptos a continuarem vivos na Zona.

Esse evento é conhecido como o Segundo Desastre. Atribuíram a culpa aos resíduos radioativos da planta nuclear que emergiram por não terem sido isolados corretamente.

Em um local repleto de incertezas e preciosidades, naturalmente o governo ucraniano poria tropas militares na área para evitar que contrabandistas de artefatos os levassem para fora do país. Entretanto, essas tropas são corruptas o suficiente para deixar os contrabandistas em paz por uma boa quantia em dinheiro. Claro, não é raro ver os desgraçados atirando em homens a esmo pela Zona, apenas por diversão. Mas é possível amansa-los com dinheiro.

Eu sei de tudo isso. Não faço a menor ideia de como sei, mas todas essas informações fluíram em minha mente como vodca escorrendo da garrafa para o copo.

Eu poderia passar por eles, mas teria que pagar o que não tinha. Decidi tomar um caminho alternativo próximo. Um túnel, fedendo a algo queimado e preenchido por uma anomalia traiçoeira que já havia clamado a vida de outros tolos como eu. O caminho era longo e escuro, mas eu podia ver uma distorção no ar. Podia ver que o espectro da luz mudava ali, colorindo o mundo com púrpura.

SSS4

Tratei de arremessar um parafuso. Exploradores na Zona sempre carregam muitos deles, pois são úteis para encontrar anomalias. A Zona reagiu com o parafuso, fazendo com que a anomalia iniciasse uma fagulha de eletricidade que deu início a uma cadeia de raios que ziguezagueavam por todo o túnel.

Não estava surpreso, por algum motivo. Após terem cessados os raios, eles se dissiparam e o caminho ficou livre, apenas por alguns segundos. Talvez não tenha corrido rápido suficiente, mas o túnel respondeu a minha invasão com um estrondo seguido por luzes coloridas e um clarão que me arremessou alguns metros à frente. Minha perna formigava completamente e meu coração rufava em ritmo síncrono com meu desespero. Me arrastei por minutos que duraram horas, ouvindo nada mais além do ritmo que me mantinha vivo. Já estava fora do túnel desde que fui arremessado, mas não poderia discernir qualquer ambiente, pois tudo ao redor estava negro.

Em pequenos atos, a vida me escapava. Cessou o rufar, o incomodo na perna, minha parca visão. Deslizavam as preocupações, as incertezas. Tudo foi embora.

Por um tempo.

Até retornarem com um bipe do meu notepad que me acordou repentinamente, fazendo emergir uma agonia tão desesperadora que me fez chorar como uma criança. Eu estava sozinho, recostado em uma árvore em frente ao túnel. Era o fim da tarde e eu só podia ouvir o estrondo do raio que rasgava a escuridão daquela passagem.

Olhei o notepad e constatei que havia dormido no dia anterior e só agora acordara. Agradeci as nuvens, nossos Deuses cinzas, pela segunda chance. Afinal, eu não podia morrer, pois tinha que matar Strelok. E justamente por causa dele eu estava desperto. Um homem chamado Fox me mandou uma mensagem, pedindo para que eu o encontrasse em uma casa ao norte da ponte, pois ele teria informações sobre minha missão. Desconfiei a princípio, mas ele citava Sidorovich, então seria uma fonte confiável.

Fiz um esforço dramático para levantar e me apoiei na árvore enquanto minha cabeça girava e a escuridão tomava meus olhos, fazendo pequenas formas escuras dançarem a minha frente para onde quer que eu olhasse. Demorou alguns segundos até o mundo voltar a clarear, mas enfim me recuperei, então segui em frente.

Caminhava de maneira desengonçada, como se tivesse esquecido de como se deveria andar. Cambaleava entre o mato alto, fazendo muito barulho e deixando um rastro de vegetação esmagada que seria a minha ruína caso estivesse sendo caçado. Avistei duas grandes construções, pensei que fossem casas a princípio, mas descobri que eram estábulos que agora haviam se tornado chiqueiros. Sei disso pois os porcos estavam lá.

SSS5

A radiação decorrente do Segundo Desastre transformou pessoas e animais em Chernobyl e nos seus arredores. Ela trouxe demônios a terra, criaturas absolutamente repulsivas e, em alguns casos, agressivas. Uma delas remexia uma caixa na esperança de conseguir abri-la. Alguns desses mutantes podem ser bem inteligentes.

Devido ao meu descompasso com as pernas, a criatura me ouviu e virou o rosto para mim, bem devagar. Com a minha espingarda devidamente carregada, pus dois tiros no rosto gordo e amassado que me encarava com expressão de pavor. Atrás de mim, outra criatura da mesma espécie lançou uma investida corpulenta sobre minhas pernas. O impacto foi o suficiente para me lançar no ar, com as pernas sacudindo desesperadas enquanto meus braços tentavam encontrar um apoio em algum lugar. Cai com as costas no chão, perdendo o fôlego momentaneamente, porém, mesmo assim tentando agarrar minha pistola. Quando saquei a arma, a criatura já lançava uma segunda investida, então não tive escolha a não ser atirar mesmo caído. Disparei depressa e desesperadamente, e mesmo após a criatura ter tombado, continuei disparando até acabar com todo o pente de balas carregado. Foram ao todo 8 disparos, mas creio que apenas no 5º a criatura havia morrido.

Eu não lembrava de como caminhar corretamente, mas nunca me esqueci de como atirar.

Recarreguei minhas duas armas, sacodi a poeira da minha jaqueta e cutuquei as criaturas com o pé, então foi ao encontro de Fox.

Encontrei-o há meio quilômetro dali. Estava em uma casa cujo teto havia sumido e as paredes estavam, em maior parte, tombadas. Fox agonizava no chão, se remexendo enquanto gemia e xingava. Tive sorte de encontra-lo vivo, mas ele ganhou na loteria, pois eu trazia um kit de primeiros socorros, antibióticos e anestésicos que havia comprado com Sidorovich antes de seguir minha missão.

SSS7

– Por Deus, como isso dói. – exclamava enquanto eu suturava o terrível ferimento que ele havia sofrido. – E queima. Céus, como queima.

– Se você parasse de tremer, tudo seria mais fácil.

– Desculpa, mas dói muito. – cerrou os dentes com força suficiente para trinca-los. – Aqueles cães cegos quase arrancaram minha perna. Porcaria! – ele pegou uma pistola que estava no chão e arremessou longe. – Ela tinha que travar justo quando estou cercado? Eu vou matar Sidorovich.

Ri enquanto terminava a costura.

– Você comprou esse pedaço de lixo dele? – perguntei.

– Sim, aquele gordo desgraçado. – olhou bem para meu rosto, então tentou espiar a tatuagem que começava no meu pulso. – Homem Marcado.

– Também me tratará mal por isso? – guardava meus acessórios no kit e pegava um antibiótico e um analgésico.

– Claro que não, você salvou minha vida. Não é como os outros. – Fox respondeu enquanto aceitava os comprimidos. Homens como ele temiam homens como eu por causa da marca. Por algum motivo, aqueles que possuíam a tatuagem costumavam caçar os demais contrabandistas. – Mas já imaginava isso, pois Sidorovich me disse que você era confiável.

– Você é tolo por confiar em um mercador. – ri enquanto ajudava-o a se recostar na parede.

– Pelo menos eu espero que você seja uma mercadoria cuja propaganda faça jus a qualidade. – deu um meio sorriso enquanto olhava para a pistola que havia jogado. – Eu te falo o que sei sobre Strelok, mas prometa-me ajudar meu irmão, que está tendo alguns problemas com bandidos lá no Lixão.

Promessas. Não lembrava de qualquer uma que tivesse feito, mas sabia que era ruim com elas.

– Se não for algo estupidamente perigoso, eu prometo.

– Não é. São apenas uns dois desgraçados que continuam a incomoda-lo em um hangar que ele usa como refúgio. – acenei com a cabeça, em concordância, então ele prosseguiu. – Strelok. Não sei porque todo mundo tem tido súbito interesse nele ultimamente, mas o encontrei uma vez. Ele atirou em uns amigos, mas apenas como alerta para se afastar. Nos comunicamos a distância, gritando um para o outro, mas ele estava apenas esperando por alguém, então eu e meus companheiros resolvemos partir em paz.

– Você sabe como ele se parece?

– Não. Ele estava muito longe. – fechou os olhos por um momento, provavelmente para ignorar a dor, depois voltou a falar. – Mas meu irmão, Seriy, sabe. Ele já fez um trabalho para Strelok.

Então, eu teria que ajuda-lo de todo modo. Aos poucos sentia as cordas me puxando e empurrando para todas as direções da Zona. Mas só assim eu conseguiria matar Strelok.

Havia uma casa vizinha praticamente intacta. Ajudei Fox a chegar até lá e ele dividiu meia garrafa de vodca e dois enlatados comigo. Péssima refeição para homens que estão constantemente à beira da morte, porém uma das poucas viáveis. A comida era trazida de fora, portanto deveria durar bastante. A bebida era nosso prazer e tira-gosto. Quase toda a água na Zona está contaminada, portanto a vodca era nossa alternativa. No fim, a falta de água era uma vantagem, pois nos permitia beber vodca durante todo o dia e assim encarar com mais facilidade todas as atrocidades que vivenciávamos.

Aproveitei para fazer um bochecho com a bebida e remover a camada de sujeira sobre meus dentes. Agora eu passava a língua nos dentes freneticamente, desconfortável com a limpeza. A imundice da Zona, em todos os seus aspectos, acabava tornando-se o nosso padrão.

Me despedi de Fox e segui a estrada para o norte, em direção ao Lixão. Ele havia me avisado sobre bandidos que haviam tomado um posto na passagem para a região, portanto permaneci o tempo todo em alerta, olhando para todos os lados, andando longe da estrada, tentando evitar as anomalias quando meu detector bipava enlouquecidamente.

Estava quase no fim da tarde. Sentia o gosto de cinzas na boca, a brisa gélida na pele e apreciava a canção do abandono, regida pelas folhas secas que eram arrastadas pelo vento.

Talvez eu seja louco, porém aprecio o eterno outono que fora instaurado na Zona.

Vibrante e repentino, um disparo me despertou do transe no qual eu estava absorvido. Me abaixei entre os arbustos e olhei para todas as direções, até escutar outros tiros e ter certeza que não eram direcionados à mim. Saquei meu binóculos e comecei a procurar o atirador.

SSS6

Um pouco distante, entre árvores e grandes rochas, um homem lutava contra cães cegos que o cercavam. Ele atirava continuamente enquanto era mordido da mesma maneira que Fox havia sido. Os cães fugiram, mas deixaram uma fenda vermelha que fez o homem mancar lamentosamente. Olhei em outras direções e logo vi os amigos dele correndo em auxílio. Também vi a base de onde vieram. Não portavam emblemas no uniforme, portanto não pertenciam a nenhuma das facções que se formaram na Zona. Conclui que fossem os bandidos dos quais fui alertado. Atravessei a estrada de terra enquanto um deles levava o amigo para dentro do posto e os outros três estavam distraídos.

Esperei atrás de uma árvore enquanto os três que sobraram vinham na minha direção, o mesmo sentido por onde fugiram os cães. Quando estavam perto, atirei com precisão em um deles, que no mesmo instante foi arremessado contra uma das grandes pedras, espalhando uma mancha de sangue nela.

SSS8

A represália foi intensa. Eles estavam portando metralhadoras e eu uma espingarda, tive que me deitar para não ser atingindo. A árvore a minha frente se desfazia em lascas que saltavam ininterruptamente e atrapalhavam minha visão. Decidi soltar a espingarda e pegar a pistola. Atirei a esmo algumas vezes até ter acertado algum deles, pois a rajada de tiros havia cessado. O outro se escondeu atrás de uma das pedras, me dando tempo para ficar de pé e caminhar com a arma apontada. Eu avançava tenso, com os músculos da perna rijos, como se não quisessem seguir adiante. Um tiro errado, para qualquer um dos dois, significaria a morte.

Ele errou.

O último tiro ressoou muito mais alto. A cabeça do pobre diabo havia sido aberta cirurgicamente com uma bala precisa. Agora estava na hora de tomar os espólios.

Roubar dos mortos é uma das atividades mais comuns na Zona. Na maioria das vezes os homens aqui não se dão ao trabalho de enterrar um amigo morto. Ou você toma tudo o que ele tem e deixa o corpo para trás ou você toma tudo o que ele tem e queima o corpo.

De qualquer forma, todos nós roubamos da morte. Todos nós estamos em débito com ela.

Consegui alguma munição, comida, dinheiro, um silenciador para a minha pistola e uma metralhadora AK-47 quase nova. Inspecionei-a e me senti estranhamente familiarizado demais com a arma.

Eu não sabia, mas a morte viria cobrar por tudo o que havíamos roubado dela. O braço direito da Zona exerceria sua fúria punidora.

Começou com as nuvens, que transformaram-se da melancolia usual para a soturnidade com a cor sombria que adquiriram. O céu pareceu se encolher e descer aos poucos a terra, os ventos aumentaram repentinamente, calando todos os outros sons na Zona com um rosnado assustador.

SSS10 (2)

Corri para o posto, desesperado por um abrigo. O céu mudava novamente, dessa vez do negro para o laranja. As nuvens pareciam ter desaparecido em flâmulas prestes a incendiar a terra.

Cheguei no posto exausto e avistei o homem que havia carregado o companheiro ferido fugindo pelo portão traseiro. O local era cercado com um muro consistente, possuía um tanque de guerra bem enferrujado e esburacado no pátio e uma casa. Quem sairia nessa tempestade quando poderia se esconder dentro de uma casa?

Entrei e fechei a porta, em alívio. Minhas pernas tremiam, eu ofegava exaustivamente, mas em vez de descansar, resolvi checar todos os cômodos. Mal havia atravessado o corredor inicial quando me deparei com uma cena que me persegue toda vez que fecho os olhos.

O homem ferido pelos cães estava no chão, gemendo e muito pálido, com um olhar perdido que indicava uma febre intensa em detrimento da ferida. Perto dele, uma imagem disforme de alguma criatura avançava. Era assustador. Suas feições não eram bem definidas e seu corpo não parecia sólido. Uma figura fantasmagórica, que avançava na minha direção com um intento perverso, certamente.

SSS11

Fiquei aterrorizado. Minhas entranhas começaram a dançar dentro de mim, eu não conseguia conter minha boca, que abria e fechava pateticamente. Atirei na criatura, mais por reflexo que por qualquer outra coisa. Ela se desfez na minha frente. Eu não senti nenhum vento além do que soprava descontroladamente, não senti outro cheiro além do perfume da Zona. Poderia muito bem ser um sonho, mas era real.

Sai dali imediatamente e segui correndo pela estrada enquanto os ventos aumentavam sua intensidade e outras criaturas como aquela começavam a surgir. Apareciam de toda parte, vindas do vazio onde reside a morte, para executar sua justiça. Eu não suportava olhar para elas, portanto, apenas corri e tenho quase certeza que fiz isso de olhos fechados.

Uma fisgada na perna me fez parar após dois quilômetros percorridos, perto de um grande galpão, mas os ventos aumentavam, as criaturas continuavam surgindo, e não tive escolha a não ser mancar e suportar a contração firme e dolorosa da minha coxa. A dor era aguda e se intensificava a cada passo, mas eu precisava atravessar os portões que guardavam o galpão.

SSS12

Consegui entrar no local enquanto sentia o calor das coisas que me perseguiam. Também senti um arrepio quando algo passou muito rápido por mim, desfazendo as criaturas. Se eu conseguisse enxergar direito, saberia naquele momento que havia sido alguma boa alma que atirou nos fantasmas para me salvar, mas tudo estava escuro e desabei exausto, abraçando o concreto duro e frio do galpão.

Acordei com vozes desesperadas gritando acima, seguidas do estouro familiar de armas de fogo e do trovão produzido pelo teto de aço do galpão em choque com o vento. A tempestade continuava em uma percussão obstinada que punha o espírito dos homens abaixo de todas as camadas da pele.

Não sentia metade do meu rosto, mas quando me levantei o concreto me deu sua mordida, fisgando minha bochecha e arranhando com as pequenas crostas de sangue que haviam se formado com o impacto do desmaio. Minha cabeça tonteava e demorava a perceber quatro homens muito próximos a mim, cujas vozes soavam desesperadas. Um deles caiu bem em cima de mim, me levando ao chão novamente. Empurrei-o e descobri que ele estava morto, cravejado com balas vindas de uma rajada que desenhou uma linha vertical sangrenta em seu peito e pescoço. O choque de perceber a morte próxima novamente me fez despertar para o que estava acontecendo.

A entrada traseira do galpão estava sendo invadida por ladrões que fugiam como ratos da tempestade. Eles preferiam encarar nossas balas se expondo ao grande espaço sem local para se esconder dentro do balcão do que ficar sem abrigo. Disparavam sem parar enquanto corriam, em uma tática medieval estúpida, mas apenas eficaz naquele momento por estarmos em grande desvantagem numérica.

Vi uma granada no cinto do homem que morrera e a joguei na direção dos bandidos. Eu e mais três estávamos protegidos por caixas de metal empilhadas afim de formar uma barreira. Arremessei cegamente e me abaixei, ouvindo em seguida o estilhaçar de vidros e barris de metais devido à violenta expansão de gases da granada. Havia matado dois homens, mas outros vinham em carga. Um aliado foi acertado na cabeça e caiu no mesmo instante, um outro saiu desesperado da proteção para se esconder em um ponto mais vantajoso taticamente, porém não conseguiu chegar até lá.

SSS14

Meu único companheiro restante estava mais calmo. Além da barreira de caixas, a nossa frente havia um vagão de trem estacionado. Ele protegia o centro, enquanto os flancos ficaram por nossa conta. Fiquei com o lado esquerdo e o outro defensor com o direito.

Peguei uma metralhadora melhor e mais precisa com um dos mortos, uma PP – 19 Bizon. Me posicionei entre um espaço na barreira de caixas e disparei como se fosse pela última vez. Cada rajada vibrava em ondas que repercutiam por todo meu antebraço e me exigiam um nível de controle muscular demasiado para mim naquele momento. Ainda estava exausto da corrida e do desmaio, a visão estava embaçada, e de alguma forma, a surdez causada pelos tiros inimigos acertando as caixas de metal e causando um clangor agoniante também era um fator.

Atirei, e continuei com o dedo no gatilho enquanto as cápsulas voavam praticamente em chamas ao meu redor, um conforto vindo da morte, talvez. Antes de morrer, sentiria um pouco do calor de um disparo, o único abraço quente e embalante que receberia na Zona.

A curta batida do som produzido pela arma quando está sem balas me fez perceber que o estrondo exterior havia cessado, assim como a tempestade que havia-o causado.

Vibrei em felicidade, com a certeza de que o mundo ainda não havia acabado, mas logo fui tomado pela incerteza dessa afirmação quando percebi que um bandido estava ao meu lado, com os pés em cima do corpo de um aliado, me apontando uma metralhadora.

Seria rápido e indolor. Àquela distância, enfrentando alguém com nervos em fúria, eu provavelmente levaria uma rajada de balas longa o suficiente para adormecer todas as sensações táteis em um instante. Eu só não seria privado do calor inicial do disparo, estava feliz por isso.

Toda minha visão periférica fora embora e meus olhos agora funcionavam como uma luneta, focando única e exclusivamente o cano da arma daquele que seria meu algoz. Eu previa como seria o ressoar do disparo, qual a intensidade do calor sofrido, a textura da bala, a sensação de ter todo o sangue escapando do corpo.

O dedo dele empurrou com força o gatilho para trás, dando início ao processo da morte que produziria um estalo, seguido por um estrondo, que precederia o grito de agonia da vítima. Minha agonia.

Houve o estalo, mas não um estrondo.

– Sidorovich! – gritamos, ao mesmo tempo. Ele enquanto mexia na arma atabalhoadamente, eu enquanto pegava minha pistola Makarov e lhe cravejava com todos os 8 tiros que ela poderia me prover.

Ele caiu morto, com o olhar angustiado ainda desenhado no rosto. Sua arma havia travado e, portanto, Sidorovich, o mercador desgraçado que estava me ajudando, havia salvo minha vida.

Assim prefiro imaginar. Um motivo para não por uma bala nele.

SSS13

Recarreguei a arma e olhei em volta. Em toda a extensão do galpão, apenas se via corpos e marcas de balas. Eu estava sozinho na terra, mas acompanhado por amizades no céu, dos corvos que grasnavam em alegria e agradecimento por um banquete tão vasto.

Mais uma vez, roubei da morte. Tudo o que podia pegar. Ela tentou me pegar uma vez mas não conseguira, isso me deu coragem para desafia-la novamente.

Consegui uma espingarda nova, trajes melhores, muita comida, dinheiro, munição e até duas granadas. Enquanto inspecionavam os homens que me ajudaram, descobri pelas mensagens do notepad que um deles era Seriy. Pobre de mim, que teria os braços e pernas puxadas mais uma vez pelas cordas em busca de mais informações por Strelok.

SSS16

Preparei a refeição dos meus únicos amigos, empilhando os corpos do lado de fora. Eles estavam tímidos a princípio, mas depois de um tempo desceram para a janta, enquanto eu me acomodava dentro do galpão. Encontrei um cantinho aconchegante, com uma cama, sofá, fogueira pronta para ser acendida e uma garrafa cheia de vodca. Logo tratei de comemorar minha vitória secando toda bebida e comendo um pouco de pão e mortadela que havia acabado de roubar da morte.

Era um banquete de luxo para uma vitória improvável. Mais um dia sobrevivido na Zona.

Mais uma experiência. Mais uma história para contar.

Adormeci pouco depois, ouvindo o grasnar dos meus amigos lá fora e imaginando sobre o que eles estariam conversando.

Uma noite inteira ouvindo o clamor por mais corpos. Um clamor por Strelok.


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